Soares é fixe vezes oitenta
A minha mais antiga memória política remonta às eleições presidenciais de 1986. Não cresci numa família altamente politizada, mas nunca me esquecerei da noite eleitoral do confronto que opunha Mário Soares a Freitas do Amaral. Viveram-se momentos de tensão na sala de jantar da casa dos meus avós, até que chegaram os resultados finais. Soares tinha ganho, por uma margem mínima, mas tinha ganho. Foi a primeira, e provavelmente a última, vez que saí para festejar um desfecho eleitoral. Apertado no banco de trás por mulheres eufóricas, já esquecidas da pouca sorte de Maria de Lurdes Pintassilgo na primeira volta, é díficil para uma criança de 6 anos esquecer a sensação de gozo de andar a desfilar pelas ruas de Lisboa com uma bandeira da candidatura de Mário Soares.
Hoje (tudo bem, já passam algumas horas), o homem celebra 80 anos de vida. Ao ler as entrevistas do Diário de Notícias e d' A Capital é difícil separar a figura da história recente de Portugal. Mário Soares confunde-se com a história do país dos últimos anos, sendo um dos seus principais protagonistas e dos mais importantes arquitectos da democracia que hoje temos. Mais do que um «animal político», cliché que o vem (e bem) caracterizando ao longo dos tempo, é um «animal humano». Com um faro tremendo para a política é verdade, mas também com uma projecção e uma construção que ultrapassa a redutora barreira da esfera do político. Mário Soares não é uma figura consensual. Suscita paixões que se equiparam ao nível clubístico, e que atravessam todos os quadrantes do espectro político. É dos poucos políticos, logo um dos mais marcantes da nossa história, que mais ódios e reacções emocionais desperta. Lutou contra a ditadura em todas as frentes, como advogado, como civil, no exílio, nos contactos no estrangeiro.
Impediu os comunistas de chegarem ao poder efectivo, o que a extrema-esquerda nunca lhe perdoou, mas continua a ser o grande inimigo de alguns betinhos, que cresceram a ouvir dizer em casa que o Mário Soares lhes tinha roubado as terras da família. Fez a descolonização possível, e ainda hoje assume sozinho o papel de bode expiatório das neuroses de milhares de pessoas que, ainda assim, tiveram uma integração razoável na sociedade portuguesa. Abriu espaço para a constituição do CDS. Meteu o «socialismo na gaveta», expressão que ainda hoje se atravessa na garganta de milhares de esquerdistas. Jogou o jogo da política. Quando necessário nos bastidores, quando necessário na vida pública. Sempre assumiu essa condição, mesmo que o levasse a perder amizades ou granjear ódios de estimação.
Assumiu-se como primeiro-ministro, num momento em que poucos o quiseram fazer, e mesmo revelando pouco perfil para o cargo conseguiu (contra bastantes vozes): negociar a entrada na CEE e o acordo com o FMI que salvou Portugal da bancarrota. Foi Presidente da República num dos períodos mais estáveis da história da República Portuguesa, e seguiu os seus mandatos com notável intuição política. Já afastado da política nacional, decidiu regressar e candidatar-se a umas eleições europeias. Fez campanha, esteve na rua, debateu, sempre com grande disponibilidade e espírito de combate. Quis ser presidente do Parlamento Europeu e perdeu. Muitos escarneceram, muitos riram, muitos vaticinaram o seu regresso, que nunca se submeteria à condição de simples deputado. Mas Soares fê-lo, cumpriu o seu mandato e viajou com notável frequência entre Estrasburgo e Lisboa, para um homem da sua idade. Continua a bater-se pelas suas causas, e a fazer aquilo que gosta. Política. Seja ao marcar um almoço com Cavaco Silva, ou a empurrar Freitas do Amaral para a presidência da República, Soares é fiel a si mesmo. Aos combates em que acreditam. Gostam de lhe apontar as contradições, mas a única resposta possível é a de que o homem evolui. Gostemos ou não gostemos, temos de respeitar os caminhos que as pessoas escolhem seguir, e que, por vezes, são os combates que nos determinam, e não o contrário. Mário Soares sempre foi um homem que combateu por uma coisa: a liberdade. O cronista mais acidamente cínico da imprensa portuguesa, Vasco Pulido Valente, também historiador, disse-o há alguns tempos: a revolução só surgiu depois do 25 de Abril, e foi feita por Mário Soares, ao impedir que os comunistas tomassem conta do aparelho do estado.
Mário Soares não é uma figura fácil para um país pequenino como Portugal. A atitude de Soares é aquela que mais ódios desperta numa sociedade que viveu asfixiada na mesquinhez durante anos a fio. É grande, gosta da vida, gosta de se divertir. Para ele viver é um prazer, não um sacríficio. Não entra em delírios pios. Para ele fazer política é uma maneira de estar na vida, por si, pelos outros, por aquilo que acredita para o país. É a antítese de Salazar. A figura-pai que ainda paira sob os espíritos de muitos portugueses, e que de algum modo acabou por ser projectada em Cavaco. Não é nenhum santo, e terá cometido bastantes erros ao longo da sua longa carreira. A infelicidade de algumas intervenções também ninguém lhe tira. Mas é assim que se constroem as grandes figuras. Hoje, a unanimidade que parabenizou o Dr. Mário Soares não foi burra. Até as poucas discordantes que se fizeram ouvir lhe devem essa possibilidade.
Hoje (tudo bem, já passam algumas horas), o homem celebra 80 anos de vida. Ao ler as entrevistas do Diário de Notícias e d' A Capital é difícil separar a figura da história recente de Portugal. Mário Soares confunde-se com a história do país dos últimos anos, sendo um dos seus principais protagonistas e dos mais importantes arquitectos da democracia que hoje temos. Mais do que um «animal político», cliché que o vem (e bem) caracterizando ao longo dos tempo, é um «animal humano». Com um faro tremendo para a política é verdade, mas também com uma projecção e uma construção que ultrapassa a redutora barreira da esfera do político. Mário Soares não é uma figura consensual. Suscita paixões que se equiparam ao nível clubístico, e que atravessam todos os quadrantes do espectro político. É dos poucos políticos, logo um dos mais marcantes da nossa história, que mais ódios e reacções emocionais desperta. Lutou contra a ditadura em todas as frentes, como advogado, como civil, no exílio, nos contactos no estrangeiro.
Impediu os comunistas de chegarem ao poder efectivo, o que a extrema-esquerda nunca lhe perdoou, mas continua a ser o grande inimigo de alguns betinhos, que cresceram a ouvir dizer em casa que o Mário Soares lhes tinha roubado as terras da família. Fez a descolonização possível, e ainda hoje assume sozinho o papel de bode expiatório das neuroses de milhares de pessoas que, ainda assim, tiveram uma integração razoável na sociedade portuguesa. Abriu espaço para a constituição do CDS. Meteu o «socialismo na gaveta», expressão que ainda hoje se atravessa na garganta de milhares de esquerdistas. Jogou o jogo da política. Quando necessário nos bastidores, quando necessário na vida pública. Sempre assumiu essa condição, mesmo que o levasse a perder amizades ou granjear ódios de estimação.
Assumiu-se como primeiro-ministro, num momento em que poucos o quiseram fazer, e mesmo revelando pouco perfil para o cargo conseguiu (contra bastantes vozes): negociar a entrada na CEE e o acordo com o FMI que salvou Portugal da bancarrota. Foi Presidente da República num dos períodos mais estáveis da história da República Portuguesa, e seguiu os seus mandatos com notável intuição política. Já afastado da política nacional, decidiu regressar e candidatar-se a umas eleições europeias. Fez campanha, esteve na rua, debateu, sempre com grande disponibilidade e espírito de combate. Quis ser presidente do Parlamento Europeu e perdeu. Muitos escarneceram, muitos riram, muitos vaticinaram o seu regresso, que nunca se submeteria à condição de simples deputado. Mas Soares fê-lo, cumpriu o seu mandato e viajou com notável frequência entre Estrasburgo e Lisboa, para um homem da sua idade. Continua a bater-se pelas suas causas, e a fazer aquilo que gosta. Política. Seja ao marcar um almoço com Cavaco Silva, ou a empurrar Freitas do Amaral para a presidência da República, Soares é fiel a si mesmo. Aos combates em que acreditam. Gostam de lhe apontar as contradições, mas a única resposta possível é a de que o homem evolui. Gostemos ou não gostemos, temos de respeitar os caminhos que as pessoas escolhem seguir, e que, por vezes, são os combates que nos determinam, e não o contrário. Mário Soares sempre foi um homem que combateu por uma coisa: a liberdade. O cronista mais acidamente cínico da imprensa portuguesa, Vasco Pulido Valente, também historiador, disse-o há alguns tempos: a revolução só surgiu depois do 25 de Abril, e foi feita por Mário Soares, ao impedir que os comunistas tomassem conta do aparelho do estado.
Mário Soares não é uma figura fácil para um país pequenino como Portugal. A atitude de Soares é aquela que mais ódios desperta numa sociedade que viveu asfixiada na mesquinhez durante anos a fio. É grande, gosta da vida, gosta de se divertir. Para ele viver é um prazer, não um sacríficio. Não entra em delírios pios. Para ele fazer política é uma maneira de estar na vida, por si, pelos outros, por aquilo que acredita para o país. É a antítese de Salazar. A figura-pai que ainda paira sob os espíritos de muitos portugueses, e que de algum modo acabou por ser projectada em Cavaco. Não é nenhum santo, e terá cometido bastantes erros ao longo da sua longa carreira. A infelicidade de algumas intervenções também ninguém lhe tira. Mas é assim que se constroem as grandes figuras. Hoje, a unanimidade que parabenizou o Dr. Mário Soares não foi burra. Até as poucas discordantes que se fizeram ouvir lhe devem essa possibilidade.
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