Q&A on the Night Bus
3:00 da manhã.
Estende o dedo e inclina a cabeça na minha direcção. Arregala os olhos e arreganha a bocarra, donde disparam dois incisivos mal cortados. Abre a boca sem que saia nenhum som por dois longos segundos, que pareciam um jogo da Grécia no Europeu (doloroso de ver e manoliveiresco na passagem do tempo). Sou bafejado por um cheiro a cachorro quente de carro ambulante. Podia ser pior.
Percebo que vem aí conversa. O tipo tem um ar destrambelhado e um olhar alucinado. É melhor tirar os headphones.
«Ya know how long I been waitin’ fer dis bus?»
Começam as dúvidas sobre o que devo ou não responder.
«er…»
«Two hours. Twooooo fooooookin houuuuuurs.»
E agora? Rio? Falo mal do sistema de transportes? Critico o mayor londrino e a campanha back the bid? Explico-lhe que em Portugal temos o Santana Lopes como primeiro-ministro?
«er… yes, that’s just wrong…»
«Twooooo houuuuurs.»
Continuo a acenar.
«Twoooo foooookin’ houuuuurs. An’ya know - they tried to arres’ me.»
Agora a coisa torna-se ligeiramente interessante.
«Really?»
I guess they should have, because you are evidently a nutter.
«Yeah… They wanned to put'em handcuffs on me…»
«Er… that’s just wrong…»
And why didn’t they? And what the fuck is this smell?
«But ya know what I said’em? I said’em: you cannot judge me. I am not bound by your laws!» Os olhos arregalam ainda mais, e acompanha uma pausa dramática.
«Yes… Of course…»
Oh my, this is really going somewhere interesting now.
«Cuz you know, I only answer to the ooooone authority!»
Aqui, claro, para não fugir à previsibilidade da coisa, ele olhou e apontou mesmo para os céus.
«An’I tol’em: when judgement day comes, we’ll all be judged. And you will be judged fer this. And they knew what I mean. They KNEW what I mean. Do YOU know what I mean?»
«er… yeah… of course I do»
er… that you probably are a psychopath who believes himself to be the avenging son of fire of the Almighty God’s word or something? And that probably someone on this bus is going to get ‘saved’ tonight - meaning whacked - and it might be me?»
Acho que neste momento consegui arregalar os olhos ainda mais do que o "Filho Vingador". Tive direito a uma palmadinha nas costas e Aquele-Que-Não-É-Regido-Pela-Lei-Dos-Mortais subiu para o andar de cima.
Nos headphones a música continuava a tocar…
Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação
Sei lá,
Sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá,
Sei lá
A vida tem sempre razão.
A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que adormecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não
Sei lá,
Sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá,
Sei lá
A vida tem sempre razão.
(Vinicius e Toquinho)
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