quarta-feira, junho 21, 2006

Ruas e Acasos*


Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente na visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.

Fernando Pessoa


*Adenda: Talvez possa interessar dizer que descobri este poema num daqueles momentos nocturnos de deixa-me-lá-abrir-a-antologia-pessoana-ao-calhas-e-ver-o-que-é-que-aparece. Mais um acaso, portanto.
Nedstat Basic - Free web site statistics
Personal homepage website counter