quinta-feira, setembro 30, 2004

A 'partida' de Shyamalan


Ir ver The Village à espera de uma shyamanalada cheia de saltinhos na cadeira, de argutas reviravoltas na história e de um thriller de proporções hitchockianas é capaz de ser uma desilusão ainda maior de que o Signs. The Village não é um excelente thriller, o twist final é um bocado palonço, mesmo que algumas das cenas reafirmem que estamos perante um cineasta muito talentoso. O que vale mesmo é a história de amor. Sim, leram bem: a história de amor. E é aí que Shyamalan confirma o seu estatuto de the-continuous-next-big-thing. Quem mais para conseguir inflamar um filme, com um argumento assim-assim, através de um pungente romance entre a filha do Richie Cunningham da 'Happy Days Gang', e um Joaquin Phoenix – que depois das canastrices do Gladiator – parece que andou numa dieta de sedativos para cavalos. Brinco, mas as interpretações dos dois são mesmo pujantes. Ela, naquele cliché da ceguinha que vê mais do que os outros, é o elemento mais vibrante num filme que é (propositadamente) de uma monotonia cromática constante. Ele, exala uma confiança e serenidade que saltam do ecrã e (felizmente) aterra na cabeça do anormal que não para de fazer barulho com as pipocas. Eles são opostos, eles complementam-se, eles estão apaixonados loucamente. Mas o que é diferente aqui é conseguir saber tudo isso através de uma economia de diálogos que faria inveja a qualquer filme pornográfico, contacto físico quase inexistente, mas muito mais – muito mais – do que, por exemplo, todas as intermináveis horas que o Antony Minghella leva para nos tentar convencer que a Kirstin Scott Thomas e o Ralph Fiennes têm alguma coisa de especial, naquela pasmaceira que é o Paciente Inglês.

Há uma cena que diz tudo. Que é muito mais arrepiante que qualquer dos sustos que o realizador também nos vai acabar por pregar. Abafam-se os espantos, as vozes, e no meio da confusão duas mãos encontram-se. Ele guia-a pela multidão em pânico, sem nunca trocarem uma palavra, ela sabe que é ele – ele, admite que ela é a tal. É magistral.

Muito já foi, e será certamente, escrito e dito sobre o filme. A parábola onze de setembrista, o homem como verdadeiro inimigo de si mesmo, o poder da realidade construída, etc.etc... Mas, e volto a repeti-lo, o verdadeiro twist do filme é este: às tantas torna-se numa história sobre até onde estamos dispostos a ir pelo nosso amor. E até está bem feito. Eu gostei da partida.

quinta-feira, setembro 02, 2004

V. e o Schlemihl

Benny Profane, a schlemihl and human yo-yo, gets to an apocheir.

Não é fácil começar um livro que na primeira frase tem duas palavras que não aparecem num Oxford Advanced Learner's, mas lutar com V. é lutar com um maníaco chamado Thomas Pynchon. É um prazer. Pynchon é o autor das cerca de quinhentas páginas de uma das obras, a par de Catch-22, Joseph Heller, que mais marcaram a cena contemporânea da literatura americana - ou, pelo menos, as minhas (poucas) leituras pela ficção americana. É difícil tentar dizer do que trata o livro, quase tão difícil como explicar quem, ou o quê, é V.
Pynchon escreve com um sentido estilístico irrepreensível, atormenta-nos com um domínio anormal a nível de vocabulário e de conhecimentos factuais e com uma catadupa niagaresca de simbolismo. A escrita é ao mesmo tempo moderna sem ser modernista, no sentido que o autor não parece muito interessado em desvarios estilísticos - o que, pessoalmente, prefiro. Dos aspectos mais marcantes do livro é que por baixo das várias camadas de superficialidade com que Pynchon nos vai apresentando as personagens está uma realidade muito crua, que nos agarra e torce as entranhas, ao mesmo tempo que nos identifica com figuras deslocadas ou desoladoras.

"There's nothing inside. Only the scungille shell. Dear girl -"Saying it as phony as he knew how-"schlemihls know this and use it, because they know most girls need mystery, something romantic there. Because a girl knows her man would be only a bore if she found out everything there was to know [...] And I'm using this love that you still, poor stupe, think is two-way to come like this between your legs, like this, and take, never thinking how you feel, caring about whether you come only so I can think of myself as good enough to make you come..." So he talked, all the way through, till both had done and he rolled on his back to feel traditionally sad.

Deitados de barriga para cima. À margem. Enquanto a vida corre à nossa frente sem passar por nós. Sem conseguir dar, apenas receber, das coisas, dos objectos, das pessoas. Um schlemihl.


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