Não há nada de mal em fazer música a pensar em anúncios de empresas de telecomunicações e graus de toque-de-telemovelicidade. Como não há nada de mal em proclamar a plasticidade superficial de uns Cut Copy ou de uns Justice, como uma espécie de advento musical carregado de simbologia profunda. Mas não chega.
Assim, é reconfortante saber que, algures no mundo, existem homens que, no início do Inverno, decidem ir para uma cabana na montanha e, pelo caminho, compor um dos melhores álbuns dos anos 00.
Um álbum daqueles onde alguns temas se sentem confortáveis com o epíteto genial, ao mesmo tempo que se apresenta uma série de dificuldades para os críticos mais afectados que queiram distinguir uma canção que seja um "clássico instantâneo".
Este é For Emma, Forever Ago, de Bon Iver.
Bon Iver, aliás Justin Vernon, um rapaz do Midwest norte-americano inspirado por aquela série do médico que vai para o Alaska, abandona a banda indie a que pertence mais ou menos ao mesmo tempo que acaba a relação com a namorada, e decide passar uns tempos na cabana do pai no Wisconsin. Por que não escolheu ir passar uma semana óbvia a Cancun, nunca saberemos, mas estamos agradecidos. São quatro meses a machadar e a escrever música.
All of his personal trouble, lack of perspective, heartache, longing, love, loss and guilt that had been stock piled over the course of the past six years, was suddenly purged into the form of song. The end result is, For Emma, Forever Ago, a nine-song album.
Os primeiros dias passam ao som do escorrido "Flume", que anuncia gelidamente I am my mother's only one / It's enough, que é outra maneira de dizer "ainda bem que sou o único no mundo a beneficiar desta combinação genética, não ando nada contente". Mesmo que seja um tema a antever momentos bons, não deixa de evocar lugares comuns da chamada folk em acústica, ainda que através de águas sinuosas. Felizmente, não é indicador do que vem a seguir.
Acordamos depois com os primeiros raios de genialidade através dos falsetes assombrados de "Lump Sum", onde saímos pela cabana fora com Bon Iver e encontramos um Inverno cheio de sentimentos contraditórios, num tema inteligente e que indicia estarmos na presença de um "génio na cabana". É difícil não pensar em Jeff Buckley. São pesadelos semelhantes, mas com muito menos distorção.
Passam umas semanas e Bon Iver parece surpreender-nos com boas novas. No entanto, a aparente acessibilidade reconfortante do rádio-amigável Skinny Love esconde o desabrochar de uma série de cicatrizes. Who will love you? Who will fight? Who will fall far behind?. Não se vislumbra sequer uma fisionomia de resposta.
Someday my pain, someday my pain / Will mark you. Somos despertados a meio de um pesadelo invernoso por "Wolves (Act I and II)". Assombrados por uivos, with the wild wolves around you / in the morning, I'll call you, é tempo de atribuir culpas, de largar acusações, de tentar perceber what might have been lost. Não há confronto sem evocação. A explosão musical fogo-de-artificiosa nos momentos finais é, ao mesmo tempo, libertadora e pungente.
Depois do onirismo, a fria realidade. Descemos vertiginosamente Bike down... down to the downtown / Down to the lockdown... boards, nails lye around de encontro à violência deste tema justamente denominado - "Blindsided". No caminho gélido de uma descida que, na "linha aprendida", vai ao encontro de uma pergunta que não necessita de verdadeira resposta: Would you really rush out for me now?
No confronto que se segue, com "Creature Fear", esbarramos em choque frontal com a admissão, ainda que a indiciar uma certa lamechice, de I was lost but your fool / Was a long visit wrong?, compensada pela agressividade do refrão. Parece que Bon Iver se começa a fartar de sentir pena de si mesmo, pontuando a música com arrancadas em força que parecem caminhar para um qualquer tipo de redenção. São boas notícias que nos traz o Inverno do Wisconsin e que segue imediatamente para o instrumental apropriado de "Team".
O calor começa a degelar o Inverno, e com ele aparece "For Emma", que com "Lump Sum" e "Blindsided" é um dos momentos mais fortes deste álbum. So apropos: / Saw death on a sunny snow seriam uns dos melhores versos de abertura de sempre, se não fossem abafados pelos excelentes sopros, sem dúvida gravados posteriormente, mas que indubitavelmente já retumbavam na cabeça entrapada na cabana wisconsiana de Bon Iver, aliás, Justin Vernon.
Há uma resignação quase divertida nas linhas With all your lies / You're still very lovable, como sabe qualquer pessoa que já se tenha cruzado com uma mentirosa compulsiva, adorável mas perigosa. E não podemos fazer nada para ignorar a dimensão do medo, mascarada com a progressão optimista do tema que se cruza connosco na sequência "...my knees are cold / running home / running home".
No final, quando saímos finalmente da cabana, ao som de "re:Stacks", podemos procurar, mas não encontramos qualquer tipo de catarse. Apenas uma descoberta que pende num excelente jogo lirico-melódico, iniciada por uma referência a Qumran, e que culmina neste:
This is not the sound of a new man or crispy realization
It's the sound of the unlocking and the lift away
Your love will be
Safe with me
É aqui que Justin Vernon nos lembra que os momentos de redenção raramente são pontos de encerramento. São, isso sim, momentos sisificos de recomeço e de novas hermenêuticas. E que estas memórias, por mais marcantes ou dolorosas que sejam, não se esquecem. Guardam-se em segurança. Até sempre.