Na altura das explosões estava a dormir em casa. Por causa do turno que começa às três da tarde não estive no metro de manhã, como é costume. A estação de Edgware Road é a 7 minutos a pé de minha casa. A estação de Liverpool Street era a 7 minutos de autocarro da minha antiga casa.
Fui a pé para o trabalho. Edgware Road, virar em Marble Arch, percorrer Oxford Street até metade. Depois descer Regent Street, passar em Picadilly, Leicester Square, Convent Garden, até à Strand.
Tentei não pensar nas recomendações que diziam às pessoas para ficar em casa. Ou para não saírem dos locais onde se encontrassem. Tentei não pensar nas pessoas que ainda estavam no metro. Impossível. Impossível ligar o mp3 player e ouvir música, impossível não olhar para os olhos das pessoas, não ouvir as sirenes das ambulâncias, da polícia. Impossível não reparar nas ruas, não-desertas, mas sem transportes públicos, sem as multidões habituais.
A primeira coisa que fiz quando saí de casa foi ir carregar ao telemóvel. Na loja de conveniência perto de casa as pessoas que iam entrando cumprimentavam-me, cumprimentavam-se; trocavam-se olhares de reconhecimento, ninguém falava do que se tinha passado – não era preciso.
Fez-me impressão o ar deserto da normalmente insuportável Leicester Square, senti a falta dos homens cartazes e dos anúncios aos bares ridículos, dos turistas sentados nos péssimos e caros cafés, da vagabundagem dandy que se instala no jardim durante a semana. Em Convent Garden procurei em vão pelos turistas americanos obesos e pelos grupos de estudantes de liceu que gastam dinheiro no mercado mais
overrated de Londres e vibram com o enfadonho
slapstick dos palhaços de rua.
A cada mensagem recebida, a cada telefonema que passava pelas redes saturadas dos telefones, sentia descargas de adrenalina semelhantes àquelas que se sentem quando se acaba um exame, uma apresentação, um desafio de qualquer género. Ao longo de todo o dia tentei não pensar bem no que tinha acontecido, tentei pensar bem demais no que aconteceu, no que não muda, no que muda; tudo, nada. Trabalhei até tarde, até mais tarde do que devia: não que o trabalho fosse exactamente uma distracção, mas talvez porque fosse um indício de alguma normalidade, ou até de um qualquer significado, num dia marcado por uma carnificina. Passavam alguns minutos da uma da manhã, pensei em apanhar um autocarro, pensei em fazer o caminho todo a pé, estava cansado e quase sem reparar levantei o braço e parei um black cab.
É mesmo verdade que as cidades têm uma orgânica, um
feeling, uma vida. Acho que é nestes momentos que isto se torna mais evidente. Desde o primeiro momento que se percebeu que Londres reagiu da melhor maneira aos atentados: a cidade orgulhosa, solidária, elevou-se à grandeza da sua história, das gentes que a habitam. Do lado Este ao lado Oeste fomos todos atingidos, fomos todos alvos. Talvez não tinha sido tão espectacular, ou massivo, como foi o 11 de Setembro; talvez não tenha tido o efeito de surpresa e choque que teve o 11 de Março; mas o facto de estar cá, o facto de terem sido quatro explosões espalhadas pela cidade - em transportes tão comuns e inevitáveis como o metro e o autocarro, numa cidade que há alguma segurança, - é assustador.
Londres é uma capital imperial, uma cidade que já viu mais e pior do que estes atentados cobardes. Dessa força retiramos também a nossa própria força. Nós que somos londrinos, por nascimento, por adopção, por prazo ou apenas coração; que amanhã vamos sair de casa para trabalhar, para estudar, ou, simplesmente, passear; mesmo que não seja fácil entrar naquele metro, descer os 73 degraus de escadas, entrar no autocarro e, de repente, conter a vontade normal de subir para o piso de cima.
Espero que os responsáveis sejam levados à justiça; que os líderes do G8 sejam mais do que as caricaturas fáceis de políticos medíocres, entre a megalomania e a corrupção; que se possa marcar um novo começo para África, (muito ao lado da questão do perdão total da dívida ou o dobrar da ajuda). E que as pessoas percebam que mais importante do que ir “fazer a vida normal”, que normalmente significa ir para a rua gastar dinheiro, é mostrarmos uns aos outros que habitam nesta grande cidade – pretos, brancos, muçulmanos, pakistani, bengali, etc – que estamos todos juntos; que temos a História do nosso lado e, queremos acreditar, os ideais. Ontem fomos todos vítimas e hoje podemos acordar com medo, não devemos nem podemos ignorar isso, mas temos de o conquistar e vamos fazê-lo, vamos perseverar.
Nas palavras do mayor londrino, “Red” Ken Livingston:
Nothing you do, however many of us you kill will stop that life. Where freedom is strong and people can live in harmony, whatever you do, however many you kill, you will fail.
P.S. - A todos aqueles que se preocuparam e enviaram (ou tentaram) mensagens por telefone, sms, e-mail, orações, ou até via blog, deixo os meus mais sinceros agradecimentos, foi importante ultrapassar o dia convosco ao meu lado. Cheers.