Lux, Bar, 29 de Abril.-Vais a Kings of Convenience?
-Infelizmente, não.
-Importavas-te de ir sozinho?
-Claro que não.
-Não vou poder ir, toma.
Foram mais ou menos assim as primeiras palavras que troquei com a
Mariana na madrugada de Sábado. A Mariana que vai estrear a peça
"Cuidado Com o Que Desejas" esta quinta-feira no Teatro Bocage. A mesma Mariana que pode ser ouvida a tentar devolver algum improviso à noite lisboeta, na sua parceria cantante com os vinis do DJ Señor Pelota, ou lida à procura de qualquer coisa no
huntingideas. A Mariana que, como é óbvio, não pediu esta promoção e puxa-saquismo descarados, mas sofre pelo facto de lhe estar grato por me ter proporcionado o prazer de ver dois dos
nerds mais interessantes da música actual.
Kings of Convenience, Aula Magna, 29 de Abril, Doutorais.
A bilhete dado não se olha o lugar, diz o ditado, mas melhor era díficil. Para ser mais específico, melhor só mesmo duas filas à frente, já que fiquei sentado numa das tais poltronas doutorais da terceira fila. E para quem não sabe a Aula Magna tem das melhores acústicas das salas de espectáculos de Portugal, disse-me aqui há cerca de 7/8 anos a guitarra Picasso do Pat Metheny.
O ambiente estava muito bom. Não vi mais do que três pessoas com cara de más-pessoas (todas mulheres) e, tirando algum exagero nos vestidos hippies e penteados catalá-estilo, estava toda a gente muito bem apresentada e com um ar feliz. É importante ver pessoas felizes num concerto, no dia em que isso deixar de acontecer, aí sim, poder-se-à falar de crise dos valores ocidentais.
Como já aqui foi referido, sou um fã recente dos Kings of Convenience. Isso explica o facto de não ter levado um coração desenhado numa folha para ir mostrando à banda, como fazia uma miúda sentada na fila à minha frente. Para a próxima já não me apanham em falta.
Mas não foi a primeira vez que vi os KOC (um acrónimo perigoso) ao vivo. A meio do concerto lembrei-me que já tinha visto os dois noruegueses no hype@meco de 2002. Na altura achei despropositado aqueles dois totós de guitarras acústicas no palco de um festival de dança, falhou-me a requintada ironia do esquema cósmico das forças do universo - algo que me acontece com frequência, devo confessar.
Parece-me que este
post vai ficar bem grande, o que significa que pouca gente o vai ler até ao fim ou mesmo que já tenha chegado até aqui. É a chamada armadilha do post intimista. Adiante.
Os Kings of Convenience são aquele tipo de grandes músicos que disfarçam o facto de não serem grandes músicos com o facto de que talvez sejam mesmo grandes músicos, mas que isso não é muito importante. Também disfaraçam o facto de não serem grandes letristas com o facto de que talvez sejam mesmo grandes letristas, mas que o importante é que as frases entrem dentro da cabeça do ouvinte de forma fragmentada e de repente façam todo o sentido. É essa a essência da música pop e eles são pop, bom pop. Pop, pop, pop, não se deve ter medo da palavra Pop. Pop, pop, pop.
Por exemplo, logo na primeira música, "Until You Understand"; as luzes baixam, o público aplaude, eles assentem o reconhecimento, e começam a tocar as violinhas. Fiquei um bocado desiludido por ninguém se ter sentado ao piano, reconheço, mas depois deixei-me de ressentimentos. A conjugação das duas vozes, a do gajo giro que canta mais, com a do
nerd magricela e grandalhão dos óculos (nordicamente impecável, andou pela plateia, disse piadas, tocou trompete de boca, falou de barreiras e distâncias) é assombrosa. Eles terem começado a cantar juntos é semelhante à invenção da roda: algo simples, genial e infinitamente bonito. E no final de Until You Understand, foi logo evidente em:
I wish the only thing I had to do was to
hold my arms around you.
So long, so hard,
until you understand.Tenho uma certa facilidade em distrair-me enquanto estou a assistir a um espectáculo. Teatro, concerto, a ocasional ópera; às vezes dou por mim a pensar em coisas tão interessantes como o porquê da expressão "morte da bezerra", p.ex: por que é que os activistas dos direitos dos animais nunca vieram defender o direito de alguém pensar na "morte da bezerra" sem incorrer na reprovação da sociedade? Durante muito tempo vivi complexado com este facto (o de me distrair, não a questão da bezerra), até ter percebido que não havia problema nenhum nisto, e que uma peça de teatro enfadonha encenada por alguém não-respeitável merece tanto da minha distracção como as aulas da minha respeitável professora de Grego Clássico no Secundário.
Durante o concerto deu-me para pensar na vida, no último ano, em Londres, nos novos desafios, com as suas entusiasmantes angústias e ligeiras ansiedades. Deu-me para pensar que C. me acusou de ter
commitment problems (C. é americana), ou que C. me dizia que eu sou
um lírico (C. é portuguesa). Nisto enquanto me entravam e ressoavam na cabeça as lindíssimas melodias cantadas e tocadas por Erlend Øye e Eirik Glambek Bøe. Como o recado nostálgico da bossa em Love is No Big Truth,
A memory of the cushion life
I'm clinging to.
The image of a mutual one, our haven.a ignorância dissimuladamente jovial que pergunta
I don't know what I can save you from, ou o optimismo apaixonado que promete
you'll shine like gold in the air of summer. Tudo muito acústico, mal iluminado, bonitinho, a propiciar que um tipo ficasse ali enterrado na poltrona a pensar nas coisas boas da vida, e que mesmo as coisas menos boas da vida teriam alguma coisa de bom.
E onde é que estava o piano no Misread? Não estava, tocaram o riff na guitarra, e muito bem. A mensagem foi simples, e eu percebi: se queres ouvir o piano ouves o disco em casa.
O piano aparecia de vez em quando, embora menos do que devesse, a guitarra de cordas de aço do Øye revelou-se nada irritante - ao contrário do que eu temia -, e o alemão que tocava violino e o italiano de bigodes que produziu o disco e tinha um
bello baixo acústico de cinco cordas compunham ainda de melhor forma o cenário da Aula Magna.
O público português, coitado, tentava comportar-se de forma devida (afinal, estava ali o modelo nórdico) mas, depois de ir entrando quando o concerto já tinha começado, lá começou a bater as palmas. Bater palmas num concerto acústico, numa sala com boa acústica, é um atentado. Quem gosta de bater palmas quando ouve música são os bebés, e embora eu não vá fazer piadas com a idade mental da audiência, gostava de notar que partilhamos com os espanhóis este gosto pela palma fácil. A única diferença é que os espanhóis sabem bater palmas ao ritmo da música, o que não aconteceu muitas vezes no Sábado - como notou o norueguês grande dos óculos.
O que não tinha óculos às tantas tocou e cantou o Corcovado do Jobim, num português bem decente. Depois disse que era intimidativo fazê-lo perante uma audiência portuguesa e perante tanta boa-vontade perdoei-lhe a rasteireza daquele Corcovado; que eu teria feito com semelhante perícia, o que não é um elogio.
Já tinha passado mais de uma hora quando o sempre fixe caixa-de-óculos teve a grande ideia de chamar a plebe das galerias para que se aproximasse do palco. Passados dois minutos a banda tinha aí umas setenta pessoas em cima do palco. Parecia um daqueles espectáculos dos Up With People, um desastre. Tive de me levantar e subir para cima do palco, mas o que vale era que as pessoas tinham todas cara de boas pessoas, e teve a sua piada dançar o
I'd Rather Dance With You no palco com a banda. Quase tanta piada como a tensão que emanava do violinista alemão, cercado num palco por selvagens do sul da Europa. Infelizmente as pessoas não abandonaram o palco, mas sentaram-se, o que possibilitou o meu regresso ao conforto reflexivo da poltrona doutoral.
Já para o final do concerto, o sempre poético e descontraído Erlend Øye teve o descaramento de anunciar que ia tocar uma música para "someone who is very far away". Depois, naquela voz descomplexada, de homem quem assume o seu lirismo, começa a cantar o Waiting In Vain do Bob Marley. "How's that for a reflexive moment", não pude deixar de pensar, assim em inglês e tudo. Waiting In Vain foi uma das canções que precedeu a minha partida para Londres, que acompanhou a minha estadia em Londres, e que ainda pairava no ar quando voltei de Londres. Depois disso esvaeceu-se, e Sábado foi outra vez dedicada a "someone who is very far away"; para depois ir directo para casa, que uma noite assim não se deve desperdiçar em vão.